Antonio de Oliveira Siqueira
Meio ambiente e religiosidade: uma percepção segundo a Encíclica Laudato si’ do Papa Francisco
1. Introdução
Creio que para iniciar essa apresentação, devemos fazer por meio da afirmação doCriador por ocasião da entrada do pecado na história humana, no terceiro capítulo do livro do Gêneses: “Comerás o pão com o suor do teu rosto até voltares ao solo, do qual foste tirado. Porque tu és pó e ao pó hás de voltar”. (Gn 3, 19)
Sendo assim, nós, que somos em essência semelhantes às coisas que nos rodeiam (pois somos constituídos dos mesmos elementos), formamos um conjunto sistêmico(dependentes uns dos outros – direta ou indiretamente), e diria até: querendo ou não querendo; gostando ou não.
São Boaventura (1978, p. 254), em seu relato sobre a vida de São Francisco, escreve que o santo “quando considerou a fonte primordial de todas as coisas, encheu-se ainda mais de abundante bondade, chamando todas as criaturas, por menores que fossem, pelos nomes de irmão e irmã porque sabia que vinham da mesma fonte que ele”.
Ocorre que, por conta da entrada do pecado na nossa vida, entraram também os desarranjos e desequilíbrios que são tão peculiares aos seres humanos e podem ser percebidos ao longo de sua trajetória histórica.
Dentre os diversos desdobramentos resultantes desse comportamento inadequado, são passíveis de uma análise um pouco mais criteriosa e objetiva os prejuízos causados ao meio ambiente e, por consequência, também ao próprio ser humano.
É diante desse cenário apresentado que descreveremos como iremos tratar do tema:
SÃO TRES PARTES…
• Na primeira parte vamos abordar a questão do meio ambiente ao longo do tempo, tendo como foco o período posterior ao da Revolução Industrial e na decorrente percepção do que é sustentabilidade;
• Na segunda trataremos da questão da religiosidade vinculada ao meio ambiente; e
• Na terceira, abordaremos a Carta Encíclica do Papa Francisco, apresentaremosuma dentre tantas repercussões e meus comentários finais.
à Primeira parte
2. O Meio ambiente e a sustentabilidade
A Revolução Industrial indica um processo de profundas transformações que teve início principalmente na Inglaterra em meados do século XVIII.
Os efeitos da substituição do trabalho manual pela manufatura, por meio do trabalho humano manobrando aparelhos complicados trouxeram uma carga, um fardo, para a vida em sociedade.
A introdução de máquinas fabris multiplica o rendimento do trabalho, aumenta a produção global e, a partir deste ponto, surgiram revoluções na agricultura, na demografia, no comércio, nos transportes, dentre tantos outros.
Entre as principais características da sociedade industrial, podemos citar:
• A organização das mais diversas atividades humanas pelo capital;
• A predominância da indústria na atividade econômica; e
• O crescimento da urbanização.
Em decorrência desses fenômenos observados, surgiram também novas formas de energia (como a eletricidade e os combustíveis derivados do petróleo), pressionando a velha Europa agrária a se tornar uma região com cidades populosas e industrializadas. Tal situação exigia cada vez mais a contribuição e colaboração da natureza, não apenas pela necessidade de energia, mas também pela utilização de matérias-primas em um ritmo e intensidade muito maior do que o que ocorria antes dessa nova fase do desenvolvimento da sociedade.
Por todo esse período e até o final do século XX imperou entre nós a ideia de que podemos controlar a natureza, conceito este que foi alvo da atenção de Rachel Carson, como se pode ler no último parágrafo de seu precioso relato em Primavera Silenciosa:
O ‘controle da Natureza’ é frase concebida em espírito de arrogância, nascida da idade da pedra da Biologia e da Filosofia, quando pressupunha que a Natureza existia para a conveniência do Homem. (CARSON, 1969, p. 305)
Rachel Louise Carson, americana, foi zoóloga, bióloga e escritora, tendo como trabalho principal o livro intitulado originalmente como Silent Spring, traduzido para o português como Primavera Silenciosa, que é geralmente reconhecido como um dos principais impulsionadores do movimento ambiental global.
Neste mesmo sentido, reforçando o conceito da natureza controlada pelo ser humano, Josep Iborra Plans, missionário claretiano, afirma que: “A humanidade teve a ousadia de acelerar os processos naturais, de interrompê-los, de violá-los e submetê-los, acabando por provocar a crise ecológica” (PLANS, 2007, p. 78).
Os mais variados avanços tecnológicos que a humanidade vem assistindo(principalmente após a Segunda Guerra Mundial), não aconteceram na mesma velocidade que as melhorias ou compensações necessárias ao meio ambiente, de tal sorte que a natureza não conseguiu receber pelo menos parte do pagamento por tudo o que ela nos forneceu, seus serviços e benesses.
Este modelo de desenvolvimento inadequado e desproporcional foi considerado por Ladislau Dowbor como a “descapitalização do planeta”, ou melhor:
Na prática, em economia doméstica, seria como se sobrevivêssemos vendendo os móveis, a prata da casa, e achássemos que com esse dinheiro a vida está boa, e que, portanto, estaríamos administrando bem a nossa casa. Estamos destruindo o solo, a água, a vida nos mares, a cobertura vegetal, as reservas de petróleo, a camada de ozônio, o próprio clima, mas o que contabilizamos é apenas a taxa de crescimento. (DOWBOR, 2008, p. 123).
Amartya Sen (2010, p. 9), por sua vez, afirma que “vivemos em um mundo de opulência sem precedentes”, quando consideramos todas as conquistas importantes, tais como:
• O regime democrático e participativo se disseminando;
• Os conceitos de liberdade e de direitos humanos se embrenhando entre os povos;
• O aumento da expectativa de vida;
• A velocidade das comunicações etc.
Porém, o mesmo autor ressalta ainda que, apesar disso, “vivemos igualmente em um mundo de privação, destruição e opressão extraordinárias”, pois não podemos deixar de considerar a condição da fome como um mal crônico que assola cerca de 1 bilhão de pessoas, a violação de direitos e a violação das liberdades políticas, os problemas ambientais dos mais diversos, … dentre tantos outros. (SEN, 2010, p. 9)
É certo que, por conta dessas contradições e adversidades, surgiram movimentos de defesa do meio ambiente com as mais diferentes feições e com o propósito de combater essas condições negativas, esse desenvolvimento insustentável.
De acordo com a descrição de José Carlos Barbieri, no final do século XIX surgiram organizações ativas na defesa do meio ambiente e que envolveram indivíduos dos mais diferentes segmentos da sociedade. A primeira surgiu nos Estados Unidos em 1892, o Sierra Club, com a função inicial de proteger o Parque Nacional de Yosemitee conta atualmente com quase 700 mil associados; porém, é no pós-guerra que vai acontecer a emergência dessas organizações denominadas genericamente como Organizações Não Governamentais, as ONGs. (BARBIERI, 2004, p. 47)
Em 1968, foi fundado o Clube de Roma, tendo como líderes o industrial italiano Peccei e o cientista escocês Alexander King – contando ainda com mais 36 cientistas e economistas.
Suas comissões estudaram o impacto global das interações dinâmicas entre a produção industrial, a população, o dano ao meio ambiente, o consumo de alimentos e o uso dos recursos naturais. Seu principal trabalho foi a elaboração e publicação do documento intitulado Limites do Crescimento, que, por simulações matemáticas,estabeleceu projeções de crescimento populacional, poluição e esgotamento dos recursos naturais do planeta.
No início da década de 1970, no Canadá, o Greenpeace é fundado e com um programa agressivo para combater a destruição ambiental.
2.1. A Sustentabilidade
Decorrente de um conjunto de acidentes ambientas, pesquisas catastróficas, escassez de matérias-primas e uma série de outras pressões, acontece em 1972 a Primeira Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, na cidade deEstocolmo, capital da Suécia, que representou uma ruptura com as visões tradicionais sobre essas questões e cujo resultado palpável foi a aprovação da Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, com 110 recomendações e 26 princípios. (CURI, 2011, p. 25-26)
Outro resultado importante desse encontro, foi estabelecer alicerces bem sólidos para a continuidade das discussões, haja vista que as Nações ficaram sensibilizadas para os problemas decorrentes da postura até então adotada.
Prosseguindo com a discussão, vinte anos depois de Estocolmo, a cidade do Rio de Janeiro recebeu cientistas, chefes de Estado etc. para a Segunda Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Apesar das muitas divergências, o resultado tangível foram cinco importantes documentos:
• A Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento;
• A Declaração sobre os princípios florestais;
• A Convenção sobre as Mudanças Climáticas;
• A Convenção sobre a Biodiversidade; e
• A Agenda 21.
Para efeitos práticos, um dos principais conceitos resultantes da Eco-92 foi a definição de sustentabilidade, ou desenvolvimento sustentável, combinando a proteção do meio ambiente com o desenvolvimento dos povos, ou seja: “a capacidade de o ser humano interagir com o mundo, preservando o meio ambiente para não comprometer os recursos naturais das gerações futuras”.
Ou, de outra forma mais prática… o resultado deverá ser sempre a combinação de três condições: (TUDO DEVE SER, AO MESMO TEMPO)
• Economicamente viável – Ecologicamente correto – e Socialmente justo.
à Segunda Parte
3. O Meio ambiente e A religiosidade
Ao longo da história humana, houve a construção de diversos modos de observar o ambiente em que se vive. Alguns enxergam a natureza segundo uma estreita relação entre o humano e o cósmico; outros, que pela ciência tentam entende-la apenas pela razão; diversos, que sobre a perspectiva da fé, possuem um olhar mais profundo e teleológico.
Assim, de acordo com padre jesuíta Josafá Siqueira (2008, p. 21), as maneiras mais frequentes de observação do meio ambiente são:
• Materialista: o meio ambiente como uma dimensão biológica e evolutiva, sem valores transcendentes e sobrenaturais;
• Coisificada: como um conjunto de coisas vivas e mortas, sem subjetividade e teleologia;
• Fragmentada: o ambiente como uma realidade dissociada do social, sem tratar as inter-relações socioambientais;
• Utilitarista: a natureza como fonte de utilização, para suprir as necessidades e ambições do ser humano;
• Simbólica: observa a natureza unida e interligada em cadeias e redes biológicas;
• Utópica: o meio ambiente com uma grade e harmoniosa sinfonia, um ideal a ser vivido e imitado, porém sem uma dimensão realista do conflito e competição;
• Religiosa e mística: trata-se do acolhimento da dimensão biológica, física, química inseridas em um plano teleológico.
Especificamente no plano da religiosidade, podemos citar como principais características (SIQUEIRA, 2008, p. 22):
• A íntima relação entre as criaturas e o criador;
• A visão da natureza como lugar da manifestação do amor de Deus;
• A natureza como uma das mediações que colabora com o ser humano;
• Auxiliar no plano de salvação;
• Escola de aprendizagem do amor por meio da beleza;
• Expressão da bondade de Deus;
• Dotada de um sentido sobrenatural.
O padre Josafá destaca a importância da espiritualidade para um resgate da visão mais integradora da realidade, pois, somente conseguiremos recuperar as partes fragmentadas por meio de um olhar mais profundo e místico.
Saber que toda a criação faz parte da obra criadora e redentora de Deus, conduz os seres humanos ao seu lugar legítimo, como elementos de uma rede cósmica maior, o que abre possibilidades para a admiração e o louvor a Deus, conduzindo a um viver em que a vida é entendida como dádiva e como tal pode ser vivida em gratuidade, em confiança na presença e no amor de Deus. (CNBB, 2011, p.111)
A espiritualidade pode ser considerada como um caminho para o “resgate entre o teológico, o antropológico, e o cosmológico, cuja pedagogia é construída no contato com a natureza”. (SIQUEIRA, 2008, p. 08)
Assim, o cuidado com o ambiente pode e deve ser uma resposta ao amor redentor do Criador e com Ele podemos ser cuidadores, criadores e mantenedores, ajudando a salvaguardar o direito e a dignidade de vida das gerações futuras.
à Terceira Parte
3. LAUDATO SI’, mi’ Signore
Em 24 de maio de 2015, a Carta Encíclica Laudato si’ foi assinada pelo Sumo Pontífice Francisco, que aborda o cuidado da casa comum.
Em primeiro lugar, para situá-la, o próprio Papa Francisco, em um encontro organizado pelo Vaticano com uma série de prefeitos de cidades ao redor do mundo, disse que a sua Encíclica não é essencialmente ambientalista, mas uma Carta social, pois não se pode separar dessa vida o cuidado com o meio ambiente. (PAPA AOS PREFEITOS, 2015)
Esse documento possui além da introdução, seis capítulos, os quais são intitulados:
I. O que está acontecendo com nossa casa
II. O evangelho da criação
III. A raiz humana da crise ecológica
IV. Uma ecologia integral
V. Algumas linhas de orientação e ação
VI. Educação e espiritualidade ecológicas
3.1.Aspectos gerais da Encíclica
Um dos pontos centrais da Carta é a pergunta: “Que mundo queremos deixar para nossas crianças? ” (160).
Inspirada no Cântico das criaturas de São Francisco, a invocação Louvado sejas, meu Senhor, nos conduz ao entendimento de um agradecimento bem amplo, a tudo que nos é proporcionado pelo ambiente (nossa irmã, a mãe terra), desde o alimento do corpo até o alimento da alma, por meio da beleza daquilo que nos cerca.
3.2Primeiro Capítulo – O que está acontecendo com nossa casa!!
Como forma de não tornar a reflexão vazia ou sem sentido, este capítulo produz um conjunto de considerações sobre “o que está acontecendo com nossa casa comum”.
Trata inicialmente sobre a poluição, os resíduos e a cultura do descarte e, emseguida, o clima como bem comum.
3.3Segundo capítulo – O Evangelho da criação
Diante do que foi exposto, o segundo capítulo produz uma releitura bíblica, de tal forma que nos indica que “o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos” (95).
Ao longo desse capítulo, fica bem clara a condição de uma interpretação equivocada da sentença “subjugai a terra” (Gn 1, 28), que deve ser reconsiderada mediante o “cultivar e guardar” o jardim do mundo (Gn 2,15) e também o “reinar com Cristo”, a quem foi dado todo o poder sobre o céu e a terra (Mt 28, 18) e que está “presente em toda a criação com o seu domínio universal” (100).
3.4Terceiro capítulo – A raiz humana da crise ecológica
Neste capítulo, aparecem “as causas mais profundas” (15) para a situação em que nos encontramos, ou seja, a tecnologia, globalização, e a crise antropocêntrica.
De maneira especial, além de tantas outras possíveis observações, uma menção interessante está na condição do “relativismo prático” que é “quando o ser humano se coloca no centro” e assim “acaba dando prioridade absoluta aos seus interesses contingentes, e tudo o mais se torna relativo”.
3.5Quarto capítulo – Uma ecologia integral
Este pode ser considerado o ponto central da Carta Encíclica: uma ecologia “que integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relaçõescom a realidade que o circunda” (15).
Dessa forma, “isto impede-nos de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida” (139).
3.6Quinto capítulo – Algumas linhas de orientação e ação
Como consequência do que foi apresentado anteriormente, o quinto capítulo expõe o que podemos e devemos fazer.
Segundo o Papa, “precisamos de um acordo sobre os regimes de governança para toda a gama dos chamados bens comuns globais” (174), já que “a proteção ambiental não pode ser assegurada apenas com base no cálculo financeiro de custo-benefício. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente” (190).
Usando de maneira pertinente à sua raiz jesuíta, o Papa Francisco nos pede o discernimento quando afirma que “em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-ia colocar uma série de perguntas, para poder discernir se este levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral:
• Para que fim?
• Por qual motivo?
• Onde?
• Quando?
• De que maneira?
• A quem ajuda?
• Quais os riscos?
• A que preço?
• Quem paga as despesas e como o fará?” (185);
… Como uma convocação por transparência e honestidade nas decisões.
3.7Sexto capítulo – Educação e espiritualidade ecológicas
Como “toda mudança tem necessidade de motivações e de um caminho educativo”(15) e o que se percebe nos problemas ambientais são as questões ligadas aocomportamento humano, o último capítulo trata da educação e espiritualidade ecológicas.
A premissa está na “mudança nos estilos de vida” (203), que, por sua vez, conduzirá “a mudança do comportamento das empresas, forçando-as a reconsiderar o impacto ambiental e os modelos de produção” (206).
Meus comentários:
1 – A ausência da espiritualidade oriental ambiental
“É espantoso que um homem possa ser tão mau a ponto de quebrar um galho da árvore depois de lhe comer os frutos” (Buda)
2 – Um contraponto, apesar de estar implícito na Carta
Um dos pontos centrais da Carta é a pergunta: “Que mundo queremos deixar para nossas crianças? ” (160).
(… QUE CRIANÇAS VAMOS DEIXAR NO NOSSO MUNDO?)